quarta-feira, 28 de março de 2012

Vida no interior



Há muitos anos moro em uma cidade grande. E quando venho para o interior percebo que, em tempos de globalização, a maior diferença que encontro é a campainha da porta.

Lá, os muros, o porteiro eletrônico ou o porteiro de carne e osso não permite que alguém aperte a campainha da minha porta. Quando chamam, é sempre pelo interfone. Reconheço a voz, vejo a imagem.

A campainha traz uma surpresa, sempre. Quem a toca? Pode ser o entregador de gás ou água, o garoto que vende jornal, alguém pedindo esmola, a cuidadora do dia.

Minha mãe mora nesta rua há mais de 50 anos. A rua tem somente um quarteirão. Cresci aqui e apesar de algumas casas terem se transformados em prédios é neste pedaço de chão que tem as suas raízes e conhece todos.

E como toca a campainha desta casa... A antiga colega de trabalho, com idade para ser sua filha e como tal se considera, traz os primeiros agrados do dia. Mostra o que trouxe, senta-se à mesa e juntas repartem uma refeição.

Assim que parte, é a vez da eucaristia. Alma caridosa, de casa em casa levando a palavra e o consolo de Cristo para os enfermos.

Acompanho-a até à porta e encontro o motorista da amiga, carregando uma braçada de taioba. Verdura sem vergonha, que se esparramava à beira dos córregos, hoje é rara e desejada.


O cheiro de um doce de figo sendo feito, penetra pela janela. O calor é grande e imagino que tenho um tacho de cobre a borbulhar ao meu lado.

A campainha traz uma visita. Irmã do meu pai, 89 anos de pura energia e vigor. Almoça conosco e traz notícias da família. Nos últimos 19 dias esteve em Campos, Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis, Vitória e agora chega em Muriaé. Sempre viajando sozinha. E, enquanto conversa, as mãos se movem em pontos altos e baixos e vejo surgir mais um sapatinho de bebê.


À porta encontro o rapaz dos correios. Elegante como um Obama, ao invés de cartas a sua encomenda é um pote que de longe parece besouros. Fico rindo da minha vista cansada quando percebo que trata-se de um pote com ameixas em calda. Companheiras do manjar branco, presente da amiga. Junto também uma penca de coco da Bahia para que ela tenha água fresquinha todos os dias.

É a hora do terço. Uma vez por semana as amigas chegam, cada qual trazendo o melhor de si. Uma, o conhecimento profundo dos assuntos bíblicos. Outra, a devoção sem limite. Todas procuram na oração a paz para os seus corações. Tem sempre um agradinho para o estômago: o bolo repartido generosamente, o biscoitinho feito com carinho. E muitos, muitos abraços e apertos de mão, gestos de fraternidade.

Uma voz, por cima do muro, pergunta se minha mãe está bem..

Ouço a campainha: é a fisioterapeuta para as atividades físicas.

A campainha toca novamente: é a cuidadora da tarde. Sempre com um sorriso e cantando, apesar dos inúmeros problemas familiares.

Toca outra vez: é a filha que traz as compras necessárias da despensa, uma pequena pausa para comentar os acontecimentos do dia e saber se precisamos de alguma coisa. Lambisca o lanche da tarde e sai para resolver as pendências - contas para pagar, providenciar um pintor para pequenas reformas na casa, levar documentos para o advogado. Planejar o almoço de aniversário da próxima semana.

A campainha anuncia a chegada da cuidadora noturna. Fã de Luan Santana, conta histórias do seu ídolo e sabe exatamente onde faz o show hoje, qual  recado que postou nas redes sociais. Mostra as fotos da visita que fez com os amigos ao asilo da cidade para comemorar o aniversário do cantor. As fotos serão enviadas para ele.

Final do dia. Hora da novela e as notícias do telejornal. Luzes apagadas, a cama cheirosa nos espera. O toque da campainha nos assusta: é a vizinha, orgulhosa com o pote de doce de figo na mão e o último agrado do dia.

O que nos resta fazer? Agradecer a Deus por estas alegrias. Nem precisei procurá-las para oferecer à minha rainha. Todas chegaram ao som de uma campainha.

Eu vi aqui

9 comentários:

Dani Martins disse...

E no final de tudo, o que tem mais valor nessa vida é o que fica assim, registrado na memória.
Delícia de texto.
Bjk e bom dia.

Mariana Penna disse...

Pura verdade. Na cidade grande não existe mais campainha, só interfone!!

Um beijo com cheirinho de interior!!

Tina Bau Couto disse...

Amo figo, fruta do pé, o cheiro, o jeito, a sabedoria, a simpatia, a calmaria, a poesia dos interiores.
Amei cada linha de seu texto e descrições, vou vir de novo com tempo para comentar a altura :)

Anônimo disse...

Que história linda. Simples e bela!

Lucia Luz disse...

Que delícia.
E assim a vida vai se movimentando e entrando amor casa à dentro.
Eita coisa boa!
Estou fazendo doce de figo aqui.
Um beijo na princesa e na rainha.

Lucia

Leninha Brandão disse...

Mas que maravilha de postagem,amiga Beatriz!Me deu vontade de estar também em Muriaé e ir te fazer uma visita e tomar um cafézinho com você e sua mãe.O nome dela também é Leninha,não?Tenho uma ligeira lembrança de uma pessoa elegante e delicada,com o meu nome.
Olha,amiga,depois da Semana Santa devo ir à Muriaé e se nos encontrarmos vai ser muito bom.
Quando vou à casa de meu filho,sinto esta mesma sensação que você tão bem descreve:a união familiar,o carinho dos vizinhos,as visitas que chegam sem marcar hora,as pessoas de bem com a vida sem esta correria da cidade grande.Gosto desta terra,como se minha fosse.
Vou parar ou vai virar uma postagem...rsrsrs...melhoras para sua rainha e um beijo para as duas,
Leninha

mollymell disse...

Querida Beatriz, antes eram só as fotos inspiradoras, agora você nos brinda com textos belos, simples, e repletos de emoção.
É sempre um prazer muito grande visitar esse seu espaço, seu cantinho virtual.

ps.: o condicionador serve para ralear a tinta, se necessário. Talvez o nome usado no Brasil seja diferente. Passo muito esses apertos, pois muitas vezes não consigo me lembrar das palavras corretas em português :(

Sonia disse...

delicia ter benções dessas-de pessoas boas e com corações grandes -um beijinho

Anônimo disse...

AMEI seu texto, lindo, pungente, tocante! Ainda bem que ainda existem lugares assim, que a globalização ainda não engoliu totalmente. Bjs